sábado, 9 de março de 2013

Tigres modernos


Foi com indignado asco que, sentado em meu trono, descobri que meu templo ascético fora profanado. A sacralidade de minha individualidade moderna violada por uma miserável barata!

O que pensariam meus estoicos antepassados hominídeos diante de minha expressão de frustrada indignação ao pousar meus olhos no ser invertebrado, de tom castanho que, irreverente, fingindo indiferença a minha presença ameaçadora, balançava suas longas e simpáticas antenas para lá e para cá?

E o que pensariam então, quando lhes dissesse o quanto aquela inofensiva criatura me incomodava? O quanto sua mera presença em minha casa causava repulsa para além do exprimível? Oras, que essas pragas não se beneficiaram o suficiente de nossa simbiótica evolução? Não fomos nós humanos, seus principais benfeitores, construindo verdadeiros antros de podridão onde insetos das mais variadas e imundas castas pudessem viver longe de nossas vistas, chafurdando nos dejetos desprezados por nossa tão evoluída civilização? Porque em nome de todo o universo aquela criatura tinha de transgredir essa regra primordial, deixar seu imundo esgoto e vir saltitar suas patinhas pelo meu banheiro?!

Qual fosse o motivo, era tarde demais para filosofar. O templo fora violado. A barata tinha de morrer!
Fosse um homem moderno precavido, certamente teria ao meu alcance uma arma de destruição e massa na forma de cilindro de ferro com gás intoxicante, que após uma cavalar dose sobre as costas da invasora (E bem longe dela!) poria um fim relativamente limpo aquele ultraje. Entretanto, esse não era o meu caso. O veneno, se houvesse, estaria em outro cômodo e a ideia de perder a criatura de vista para ir pegá-lo não era aceitável. Esses seres rastejantes fingem-se de bobos, mas são muito espertinhos. Mesmo que, sob minha perspectiva, ela estivesse de costas, alheia a minha ameaçadora presença, estava certo de que tinha em conta cada mísero movimento de meu corpanzil gigantesco e que suas perninhas matreiras trabalhariam rápido para evadir-se tão logo suas antenas sensoriais detectassem minha ausência.

Teria de ser como nos velhos tempos. Teria de exercitar meus genes caçadores, ativar minha ancestral bestialidade para abater aquele tigre moderno que tanto ameaçava minha sobrevivência. Munido de minha lança de borracha flácida, que outrora fora calçado de pobre, mas que agora valia uns bons tostões (suficientes para considerar o estrago que faria após o embate terminar) lancei-me a caçada.

Preparei o campo de batalha, afastando todo e qualquer possível refúgio que a indesejável visitante pudesse usar para se esconder. Tinha uma obvia desvantagem, pois que ela simplesmente poderia subir em direção ao teto e lá, minha lança não alcançaria, exceto se fosse arremessada. Ciente de minhas limitações, sabia que no máximo o ataque a distância serviria como um engodo para forçar a vítima a baixar ao alcance de minha fúria.

Não foi necessário. Aquela ali, ou era muito ingênua ou muito atrevida, porque sequer fez menção de se mover conforme minha sombra projetava-se sobre ela. Apertei a arma com força na mão direita, preparei o ataque, cerrei os dentes e lancei-me ao ataque.

Mas esta barata era das boas! Talvez um gênio perdido entre as bilhões de sua espécie, pois que por milagre ou por ciência, respondeu a iminência de sua morte com a única arma que realmente poderia me derrotar. Abriu suas insuspeitas asas e lançou-se ao ar, tal qual um piloto kamikaze em seu desigual embate contra os poderosos navios de guerra inimigos.  Sua iniciativa surpreendente surtiu o efeito desejado, pois que tomado pelo pânico de ser atingido pelo corpo infecto do pequeno monstro recuei, pisei no tapete que deslizou me levando a um atabalhoado tombo. Na ânsia de impedir a queda lancei mão das armas e tentei agarrar-me a pia, bati o pulso na quina e o joelho no vaso sanitário. Por fim, estatelei-me como um gigante derrotado no chão frio do banheiro.

Dolorido lancei olhares preocupados ao meu redor, na expectativa pavorosa de vislumbrar a inimiga lançando-se num novo ataque sobre meu indefeso e extenso corpo estatelado, contudo, o invertebrado, ciente de sua vitória de Pirro, tratou de buscar um cantinho escuro e protetor, antes que o gigante aviltado resolvesse se vingar daquele achaque.

Enfurecido, abandonei o campo de batalha e fui a cata da arma de destruição em massa. Espalhei gás por todo o cômodo e logo a criatura surgiu cambaleante de seu esconderijo apenas para receber uma nova dose desproporcional de veneno. Contemplei com orgulhoso prazer enquanto seu pequenino e asqueroso corpo se contorcia nos últimos espasmos e depois a sepultei no lixo.

Mas o estrago estava feito. O orgulho estava ferido. E, diante de meus antepassados, posso apenas baixar o cenho e lamentar. Maldita evolução!

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