Foi com
indignado asco que, sentado em meu trono, descobri que meu templo ascético fora
profanado. A sacralidade de minha individualidade moderna violada por uma
miserável barata!
O que
pensariam meus estoicos antepassados hominídeos diante de minha expressão de
frustrada indignação ao pousar meus olhos no ser invertebrado, de tom castanho
que, irreverente, fingindo indiferença a minha presença ameaçadora, balançava
suas longas e simpáticas antenas para lá e para cá?
E o que
pensariam então, quando lhes dissesse o quanto aquela inofensiva criatura me
incomodava? O quanto sua mera presença em minha casa causava repulsa para além
do exprimível? Oras, que essas pragas não se beneficiaram o suficiente de nossa
simbiótica evolução? Não fomos nós humanos, seus principais benfeitores,
construindo verdadeiros antros de podridão onde insetos das mais variadas e
imundas castas pudessem viver longe de nossas vistas, chafurdando nos dejetos
desprezados por nossa tão evoluída civilização? Porque em nome de todo o
universo aquela criatura tinha de transgredir essa regra primordial, deixar seu
imundo esgoto e vir saltitar suas patinhas pelo meu banheiro?!
Qual fosse o
motivo, era tarde demais para filosofar. O templo fora violado. A barata tinha de
morrer!
Fosse um
homem moderno precavido, certamente teria ao meu alcance uma arma de destruição
e massa na forma de cilindro de ferro com gás intoxicante, que após uma cavalar
dose sobre as costas da invasora (E bem longe dela!) poria um fim relativamente
limpo aquele ultraje. Entretanto, esse não era o meu caso. O veneno, se
houvesse, estaria em outro cômodo e a ideia de perder a criatura de vista para
ir pegá-lo não era aceitável. Esses seres rastejantes fingem-se de bobos, mas
são muito espertinhos. Mesmo que, sob minha perspectiva, ela estivesse de
costas, alheia a minha ameaçadora presença, estava certo de que tinha em conta
cada mísero movimento de meu corpanzil gigantesco e que suas perninhas
matreiras trabalhariam rápido para evadir-se tão logo suas antenas sensoriais
detectassem minha ausência.
Teria de ser
como nos velhos tempos. Teria de exercitar meus genes caçadores, ativar minha
ancestral bestialidade para abater aquele tigre moderno que tanto ameaçava
minha sobrevivência. Munido de minha lança de borracha flácida, que outrora
fora calçado de pobre, mas que agora valia uns bons tostões (suficientes para
considerar o estrago que faria após o embate terminar) lancei-me a caçada.
Preparei o
campo de batalha, afastando todo e qualquer possível refúgio que a indesejável
visitante pudesse usar para se esconder. Tinha uma obvia desvantagem, pois que
ela simplesmente poderia subir em direção ao teto e lá, minha lança não
alcançaria, exceto se fosse arremessada. Ciente de minhas limitações, sabia que
no máximo o ataque a distância serviria como um engodo para forçar a vítima a
baixar ao alcance de minha fúria.
Não foi
necessário. Aquela ali, ou era muito ingênua ou muito atrevida, porque sequer
fez menção de se mover conforme minha sombra projetava-se sobre ela. Apertei a
arma com força na mão direita, preparei o ataque, cerrei os dentes e lancei-me
ao ataque.
Mas esta
barata era das boas! Talvez um gênio perdido entre as bilhões de sua espécie,
pois que por milagre ou por ciência, respondeu a iminência de sua morte com a
única arma que realmente poderia me derrotar. Abriu suas insuspeitas asas e lançou-se
ao ar, tal qual um piloto kamikaze em seu desigual embate contra os poderosos
navios de guerra inimigos. Sua
iniciativa surpreendente surtiu o efeito desejado, pois que tomado pelo pânico
de ser atingido pelo corpo infecto do pequeno monstro recuei, pisei no tapete
que deslizou me levando a um atabalhoado tombo. Na ânsia de impedir a queda
lancei mão das armas e tentei agarrar-me a pia, bati o pulso na quina e o
joelho no vaso sanitário. Por fim, estatelei-me como um gigante derrotado no
chão frio do banheiro.
Dolorido
lancei olhares preocupados ao meu redor, na expectativa pavorosa de vislumbrar
a inimiga lançando-se num novo ataque sobre meu indefeso e extenso corpo
estatelado, contudo, o invertebrado, ciente de sua vitória de Pirro, tratou de buscar
um cantinho escuro e protetor, antes que o gigante aviltado resolvesse se
vingar daquele achaque.
Enfurecido,
abandonei o campo de batalha e fui a cata da arma de destruição em massa.
Espalhei gás por todo o cômodo e logo a criatura surgiu cambaleante de seu
esconderijo apenas para receber uma nova dose desproporcional de veneno.
Contemplei com orgulhoso prazer enquanto seu pequenino e asqueroso corpo se
contorcia nos últimos espasmos e depois a sepultei no lixo.
Mas o estrago
estava feito. O orgulho estava ferido. E, diante de meus antepassados, posso
apenas baixar o cenho e lamentar. Maldita evolução!
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